A noite era habitualmente comum. Suavemente quente, a famosa noite de verão, mas as luzes estavam acesas, visto que não era tão quente assim para que inexistissem na sala. Não, até as luzes da cozinha estavam acesas — embora nenhuma alma viva estivesse por ali, criando mágicas culinárias, valseando entre a mesa de jantar para se dirigir ao banheiro ou, simplesmente, desejando resfriar a casa com a porta da geladeira aberta ad infinitum. As luzes estavam acesas porque assim gostavam de estar, porque assim se via necessário e porque nós — que, como de praxe, estávamos na sala — gostávamos que assim se fizesse. E, na sala, estávamos os dois, sentados em sofás separados. Eu supersticiosamente destruindo as minhas vistas estando sentado apenas a um palmo da televisão, com o braço repousado no braço do sofá — o menor dos dois, que há tempos ganhara o (in)desejado rótulo de “meu sofá”— desprendendo uma parte do tempo para utilizar o computador, entrecortando-o com conversas, divagações e leves pinceladas oculares na televisão (porque nunca se sabe quando ela pode te engolir, se você a dá o enorme prazer de um palmo de distância, religiosamente encarando a programação pré-noturna, como eu estivera). Minha companhia, por sua vez, estava no outro sofá, o sofá maior, que posava entre os móveis da sala como um palanquim monárquico, o mais sagrado recinto onde se faziam as refeições, onde se tiravam cochilos vespertinos, onde a manicure era feita e, principal e especialmente: onde a televisão recebia sua atenção diária, sem falta — com a exceção de que, nesse caso, havia muito mais que um palmo de distância entra ela e o sofá. Mas a atenção era o mais importante e, esta, de fato, era constante.
E foi em tal configuração teatral que a anárquica desventura pré-noturna tivera início. Digo, pré-noturna porque a ambientação estava se acomodando momentos antes do azul-escuro celeste se instalar, é claro. Estava ali, se esgueirando, se espremendo, entrando na sala, desde às seis. Mas a desventura, por si, se deu às sete. Claro, só poderia eclodir a este horário, o habitual horário novelesco (um dos, na verdade). Já nos encontrávamos na quarta novela do dia, depois de intermináveis dramatizações parentais, adolescentes e romances de fim de tarde, mas não estávamos desgastados. Não, esse era o ritual da Sabedoria, aquele ritual excepcionalmente tradicionalístico que é retomado a cada semana ou, no mais tardar, a cada mês, mas que se encontra presente todo ano. Permitindo a união familiar (e Deus abençoe a união familiar), com a magia do folhetim televisivo (Saravá, televisor!), desde os primeiros sinais de aprendizado, ainda na fase infante, pueril. Aprendizado de se apreciar o folhetim. Curso Intensivo de Apreciação Folhetinesca: vagas abertas hoje, duração ilimitada.
Mas é claro que — como veremos à frente — são muitos (e eu realmente digo muitos) os folhetins e, portanto, como não poderia ser diferente, se misturam, se desgastam, se perdem, se tornam… esquecidos. Não é o normal de cada matéria escolar? E eu mesmo respondo: sim, é! E é claro que o advento da maravilhosa rede de computadores não cai no gosto de todos e, a partir disso, só recorrendo à memória ou orando para o santo das televisões, para que trama alguma torne-se alheada nos jardins da consciência. Mas eu não estava familiarizado com isso e, então, fiz o comentário. Ah, sim, o comentário. O comentário mais inocente e mais catártico que poderia ter sido feito, ante a situação, ante a tal novela das sete. E o fiz, mais ou menos, assim:

-Eu ando assistindo a versão original dessa novela. Era muito legal, não é?

E, claro, com tão poucas pistas e muita presunção, a expressão que se formou foi mista entre concordância-sem-um-pingo-de-certeza e uma simples e gloriosa confusão. Mas insisti: “é aquela novela, anda passando noutro canal, reprisada, às vezes dou uma olhada. Sassaricando!”, e foi com tal insistência que a anarquia se instalou, visto que a companhia me disse:

-Ah, era sim. Era Dona Xepa, não era? Tinha a feira em Dona Xepa

Vejam vocês: longe de mim questionar uma sabedoria que vem de cima, uma sabedoria que existe e persiste de antemão, uma sabedoria que consumiu o que eu não pude, que conviveu quando eu não era vivo nem em pensamento. E, apesar de, de fato, haver a feira em Dona Xepa, acredito nos meus olhos, nos meus ouvidos, e insisti outra vez: “Não! Como assim?! É Sassaricando!”, e a devolutiva veio em forma de olhares de consternação, olhares que se prontificavam a expressar o quanto estava eu enganado, enquanto eu fornecia mais informações: “é aquela da feira, a outra que tem a feira. Com a Cláudia Raia, se lembra? Ela que era a Tancinha. Paulo Autran era o Aparício Varella”.
Nada resolvido.
A revoada de ataques Sassaricadores e Donaxeposos estava firmada, ambos querendo provar-se conhecedores do que estavam falando. E, mesmo que eu, apenas hipoteticamente, é claro, tivesse dito que a Cláudia Raia não tinha minimamente a idade pra fazer o papel que fez na época de Dona Xepa (que, para quem não sabe, havia sido exibida dez anos antes de Sassaricando, resultando em singelos 9 anos de idade para a atriz), a persistência era severa. Ah, como eu admiro persistências severas. A maior dádiva da humanidade. E, com a persistência, veio mais uma tentativa:
Era Dona Xepa, sim!! Eu lembro, ela falava assim: “os ‘m’lão’, os meu ‘melãoum’
Neste momento, a anarquia virou caos. Sentia que estava perdendo a capacidade de argumentar, mas não porque observava que o erro era meu, e sim porque a mistura de informações havia se tornado um nó de marinheiro. Tudo o que eu tinha em mãos era dizer “Também não!!! Esta é ‘Meu Bem, Meu Mal’!!” e, sardonicamente, vejam só: desta vez, era erro meu, de fato! Um erro de interpretação, mas era erro. Erro é erro. Minha companhia nunca se referira a ‘Meu Bem, Meu Mal’ (novela que virou meme com a personagem de Lima Duarte dizendo melão, desta forma morosa, ao acordar de um coma). E pude perceber em seus olhos que, realmente, nunca havia lhe passado pela cabeça a cena desta novela. O melão, o maldito melão, era de Sassaricando, também, e isso era inegável.
E, então, apesar de leves concessões, o duelo continuou. O incessante resgate à memória de minha companhia continuou. Não desisto fácil. A persistência é uma grandiosíssima dádiva, lembram-se? Analisando atentamente o duelo, pode-se inferir que ela corria em ambos os sangues. Entretanto, como qualquer virtude — e sendo a mais nobre delas — , sabia a hora de abrir mão e jogar a toalha.
Foi quando a clarificação surgiu:
- Ah, eu me lembro agora! O Paulo Autran jogava as comidas na Fernanda Montenegro…
- …
- …essa era Guerra dos Sexos…
Após mais este desvio, veio a memória da tão comentada Sassaricando. Com uma leve, pequena ajuda de informações da Rede, devidamente postas em evidências. Mas veio, e veio com tudo. A história fora devidamente lembrada — em alguns pontos, é claro — e a ordem gradativamente voltava ao recinto, instaurando-se e conferindo um ar de apaziguamento, de coração aquecido. Da união familiar proposta pelos folhetins. A união que, se dependesse dos dois, nunca morreria, tampouco seria mal-representada.
Neste momento, já observando e atentando-se não-tão-atentamente à conversa e às tentativas de recolocar as engrenagens mnemônicas de minha companhia no lugar, estava a Terceira Pessoa. Era a do Singular, claro, apenas uma, uma é suficiente para, abruptamente, tornar tudo perfeitamente caótico outra vez. Uma simples brisa que derruba o castelinho de cartas, uma gota de óleo que contamina um oceano. E veio, esta Terceira Pessoa, referindo-se, claro, ao tema que nasceu prontificado a perpetuar o caos: a política. Por isso, estávamos apenas eu e a Terceira Pessoa, retilineamente proseando para que todo o status quo pudesse ser mantido com esmero . Isto é, até mencionarmos o nome do tal e comentarmos, em tom de controvérsia, “ah, me lembro da época que ele morreu. Foi em 2006, faz 14 anos”.
E foi neste exato instante que todo o castelinho de cartas veio abaixo, acompanhado do brusco virar-de-cabeça da minha companhia que, em estado de alerta, proferiu o seu arrebatador mote final:
espera aí… O ENÉAS MORREU?!?!
Ode à Desmemória
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